Dessa Vez Não Vou Mais: Ser Quem Não Sou
Todos usam máscaras na sociedade. Se você diz que é 100% você sempre, a sua é a pior.
Essa na sua maior parte é uma história sobre como tudo o que aconteceu comigo tem tudo haver com o higienismo urbano e como quando você não olha o suficiente para o abismo, você não pode reconhecer antes de cair dentro dele.
Aos poucos esqueci a primeira vez que vi uma pessoa morta, no meio de um show na praça de trás de casa, em como a mancha de sangue teve que ser pintada por funcionários públicos. Esqueci do dia em que minha mãe teve que me esconder debaixo da cama com barulho de tiros soando pelo bairro. Troquei essas memórias por novos privilégios, os bairros mais perigosos começaram a se afastar para os cantos de mim, sufoquei o barulho das coisas que não queria mais tocar bebendo dry martini, champanhe freixenet em taças maria antônia, pagando as contas dos meus amigos como gentileza, mas também porque podia, achava que era aquilo que acontecia quando a "favela vencia" ignorando completamente que muitas das pessoas que tiravam vantagem da minha vitória, eram brancas. Quantas vezes somos hipócritas por nos colocarmos em uma posição de isenção com tudo e com todos?
Minha culpa de classe média começou a fazer com que eu me sentisse vazia, deslocada e com um constante medo de que absolutamente tudo desabasse de um dia para o outro. Doar dinheiro não me consolava, ajudar causas não me consolava, de repente, brincar de ser uma criança rica era perigoso, atraia pessoas que nunca iam embora do meu apartamento, chegavam com a desculpa de uma depressão incurável, mas nunca largavam minhas taças, sorriam enquanto, com o meu pincel, passavam uma camada de Fenty Beauty – e eu, que não sabia dizer não, me afundava em um torpor inconfundível, quente, confortável – "Claro, pode ficar aí, eu só preciso dormir um pouco." Um emaranhado de péssimas decisões que ainda me colocariam em risco por meses a fio, que me faria sentar completamente vazia em meu sofá, sentindo meu corpo amortecer, pensando "Quem são essas pessoas?". Quando a gente esquece de onde vem e a miséria da qual já passou e, especialmente, as pessoas ruins que já encontramos na vida, acho que colocamos tudo que construímos a perder. Demorou meses para eu entender quem eram meus amigos e quem estava se aproveitando da minha solidão e carência.
Acordei hoje, os problemas causados pela minha irresponsabilidade pesaram no meu peito, minha ingenuidade me fez ter raiva e eu nunca soube lidar com o sentimento de raiva. Lembrei da conversa que tive com um morador de rua dois meses atrás sobre as clínicas pelas quais tinha passado, os filhos de quem tinha saudades, os livros que ele gostava de ler antes – mas não lembrava bem as narrativas, o que ele mais gostava na Santa Cecília. Ele andou comigo até o Bom Retiro conversando, quando ofereci dinheiro para a sua "barrigudinha", Edu não aceitou, me disse que o mais importante de quando me encontrava eram nossas conversas. Quando olhei para ele, vi um espelho, é difícil nos enxergarem como seres humanos.