Dessa vez vou tentar lembrar
Lembrança, já ouvi dizer, é o que impede a história de se repetir.
Je me souviens. O lema de Quebec que quer dizer “Eu me lembro”. Uma frase que remete, dizem as teorias, ao não esquecimento da opressão do antigo domínio britânico.
Eu tenho tido dificuldades para me lembrar. Me lembrar do que eu gostava de fazer, do que eu gostava de assistir, das pequenas coisas que tornava eu em, bem, eu.
Me vejo constantemente buscando referências de mim mesma: o que eu escrevia no meu bloco de notas, os e-books que já baixei, os livros terminados da minha estante.
Tento lembrar daquele isqueiro vermelho, que usava antes de parar de fumar, os muitos cigarros que já acendeu: em que beco eu estava, para quem posso ter pedido ou dado alguns tragos. Alguns dias fico vasculhando meus documentos salvos na nuvem ou em pen drives tentando descobrir algo sobre mim. Por um longo momento estive focada apenas em sobreviver, não tinha a menor consciência de que sobreviver dava tanto trabalho, era tão exaustivo. Ainda não sei se estou prestes a tropeçar em uma versão anterior de mim ou se vou encontrar uma nova mulher no meu corpo.
Tenho uma vaga lembrança de pessoas gostarem de conversar comigo, de talvez ter algo a dizer, mas durante os dois últimos anos algo sobre minha comunicação atrofiou, como um membro que ficou parado tempo demais. Viver dentro da minha cabeça virou um hábito tão confortável que quando alguém me pergunta algo leva alguns instantes para que eu consiga entender e então formular uma resposta, é quase como se meu cérebro estivesse repetindo Je me souviens, até finalmente me convencer a lembrar de algo.
A busca por mim mesma é difícil porque não sei exatamente se perdi algo ou se minhas lembranças me convenceram a tentar me tornar algo completamente diferente do passado. Mesmo em Quebec as pessoas já não lembram o motivo daquela frase estar estampada na fachada de tantos prédios, talvez esquecer, paradoxalmente, também signifique lembrar: lembrar que preciso deixar que as coisas aconteçam, o belo e o imperfeito, o calmo e o aterrorizante, no fim das contas tudo isso e essas palavras também, irão virar memórias.