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Ele sempre tocava o violoncelo no mesmo horário, no mesmo lugar, na maioria das noites começava com Suite Nº1 em Sol Maior de Bach, brincava com peças mais populares como Claire de Lune, terminava em algum tom triste de Mozart.
Pedro, me contavam, já tinha sido uma mente brilhante: além da música havia se esforçado para enquadrar em um modelo de família que lhe demandava uma “profissão de verdade”. Conseguira em tempos mais jovens ingressar em três cursos de medicina que nunca viram sua conclusão, era um fã de jogos de RPG e música. E nesse mundo, naquela clínica que dividimos por motivos diferentes, mas também tão iguais, ele encontrou seu acolhimento que, segundo os profissionais, seria eterno.
Para mim, a mente dele ainda era brilhante. Como ele falava livremente dos vários universos comandados por meios de comunicação que ele precisava salvar com a ajuda da ordem dos templários, dos ciganos e do exército de mortos, como com o uso das simples palavras "Reality Transpose", ele se transportava para um universo só dele, construindo o próprio mundo sem depender de ninguém.
Além de tudo, ele nunca havia esquecido como tocar, como abraçar e acariciar seu instrumento e mostrar que quando temos nossa arte, nenhuma palavra racionalizada é necessária.
Todos os dias depois que o jantar era servido e o refeitório era limpo tínhamos três horas de descanso e socialização com outros pacientes até o toque de recolher que nos mandava para os nossos quartos, um esquema de duas torres diferentes para separar os casos controláveis – os que ainda conseguiam conversar, socializar e comer por si próprios – dos casos agudos, o temido Bloco B Térreo, aquele que mantinha pessoas que eram dopadas ao longo de todo o dia, um lugar para o qual também se ameaçava mandar aqueles que tinham maus comportamentos. Nos dois blocos, o mesmo problema: não éramos mais seres humanos funcionais o suficiente para ter autonomia.
Pedro morava – e na verdade nem posso colocar no passado pois tenho certeza que nos dias de hoje ainda mora — no nosso bloco, e morar ali significava que poderia fumar seus cigarros durante o dia em que andava em círculos na praça central daquele pequeno complexo, que podia finalmente pela noite abraçar seu violoncelo, que podia em meio às cadeiras e nenhum público, finalmente dizer o que estava sentindo.
Era comum haver apenas três de nós, muitas vezes apenas eu. Como espectadora solitária o ouvia enquanto lia “O Nascimento da Tragédia” e aprendia, com o livro e com a música, que nada doce chega aos nossos olhos ou ouvidos sem ser despedaçado.
Uma vez, quando terminou sua grande apresentação, o público que só existia dentro de sua cabeça provavelmente embasbacado, Pedro olhou diretamente para mim.
— É Nocturne Opus 9 número 2 em Mi Bemol Maior — ele deu um sorriso como o de uma criança que havia recém descoberto algo — Na outra vida, quando você era minha mãe, era a sua preferida, você lembra?
Meu coração aperta, um dos seus poucos momentos de lucidez Pedro me contara que todos os seus amigos o haviam abandonado após sua esquizofrenia atingir aquele ponto. O ponto de desaparecimento, o ponto do esquecimento, o ponto do confinamento. Tudo lento, tudo longo.
— Sim Pê, eu lembro.
E de alguma forma estranha, não era mentira, algo pulsou em mim, parecia muito como lembrança.