Minha namorada me contou uma vez como Julieta, de Almodóvar a tocou e alguns dias atrás, numa tarde preguiçosa e quente, seu relato finalmente me fez dar play naquele filme.
A carta que Julieta escreve preenche silêncios ate até então foram mortíferos, revelando, para mim, muito mais como ela, apesar de mãe, também é uma mulher, uma humana, uma pessoa. Tudo que as pessoas não esperam que uma mãe seja.
Em uma das piores brigas com a minha mãe, por telefone, sem que ela tivesse acesso nem ao meu endereço, lembro de gritar que ela deveria ter me protegido. Ela não tinha um instinto que dizia que algo estava errado? Ela não era minha mãe afinal?
A verdade é que algumas de nós não sabemos como fazer isso, o contrato social de criar e admnistrar vidas. Acontece que esses erros acontecem. Acontece que mães raramente tem escolha. Apesar de saber do amor materno, também sempre soube que minha mãe não estava pronta para mim e, anos depois, ao ser tratada por ela como uma amiga adolescente, ressenti sua falta, ressenti o cuidado idealizado.
E desapareci.
Nunca soube sobre todas as dores que ela manteve em silêncio, nunca considerei como desaparecer poderia afetar a vida de uma mulher que tentou o que pode.
Então foi uma frase que realmente me fez chorar naquele filme.
Sua ausência preenche minha vida e a destrói.
Uma pequena caixa de itens que tento ignorar de uma criatura que existiu por 14 semanas dentro de mim, faz essa frase ter sentido. Fora de mim seu corpo era quase transparente, gelatinoso. Um curso natural que reduziu e amorteceu o sentido daquela separação. Mas eu continuo viva.
Uma par de vezes que vejo minha mãe por ano, raramente mais do que duas, me dá mais certeza de como essa frase faz sentido. Vejo as lágrimas e o sentimento quando me abraça, resquícios de uma mente desintegrada e frustrada de outras maternidades que não a minha. Não consigo e não sei lidar com um sentimento pra o qual não tenho correspondência, mas com o passar de dias, meses, anos, acusações, entendo cada vez mais que ela só é uma mulher que quer viver e que nesse curso perdeu coisas, mas em alguns dias, recupera sua liberdade.
Mãe não são heroínas, guerreiras, sobrenaturais. Deixar que maternidade seja só mais uma construção social é deslegitimar uma experiência que deveria ser única para cada uma.
Eu perdôo “a filha criada pelas vozes da própria cabeça” e me perdoando, aceito a vivência de maternidade daquela que me pariu.